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A constitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública

25/112021

A constitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública

Em andamento no Supremo Tribunal Federal o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6852, além de um conjunto de 22 ações movidas pelo Ministério Público Federal, arguindo a inconstitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública. A prerrogativa em questão está vigente desde 1994, ano de publicação da Lei Complementar nº 80, a qual atribui à Defensoria Pública o poder de “requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições”.

O MPF alega que essa prerrogativa fere os princípios da isonomia, da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório e do devido processo legal. Primeiramente, defende que os advogados não gozam da mesma prerrogativa dada aos defensores públicos. Por esse motivo, o poder requisitório da Defensoria Pública desequilibra “a relação processual, notadamente na produção de provas, ao conferirem poderes exacerbados a apenas uma das partes, o que ofende o princípio da isonomia, do qual decorre o preceito da paridade de armas”, sendo a isonomia um “elemento ínsito ao princípio do contraditório”. Ademais, diz que o poder de requisição se reveste “dos atributos de autoexecutoriedade, imperatividade e presunção de legitimidade, por isso não necessita de autorização judicial prévia para produzir efeitos”. Conclui, então, que o poder requisitório da Defensoria Pública também ofende o princípio da inafastabilidade da jurisdição, pois limita a atuação do Poder Judiciário.

Em voto proferido nas ADIs 6877 e 6880, a ministra Carmen Lúcia lembrou que a questão já foi analisada pelo STF no julgamento da ADI 230/RJ, na qual acolheu os argumentos ministeriais pela inconstitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública. Segundo o seu entendimento, haveria quebra da isonomia com a advocacia, pública e privada. De outro lado, em voto proferido na ADI 6852, rejeitando o pedido ministerial, o ministro Fachin concluiu que não há inconstitucionalidade no poder requisitório da Defensoria Pública, oportunidade em que asseverou: “Delineado o papel atribuído à Defensoria Pública pela Constituição Federal, resta evidente não se tratar de categoria equiparada à Advocacia, seja ela pública ou privada, estando, na realidade, mais próxima ao desenho institucional atribuído ao próprio Ministério Público”. O julgamento dessas ações foi suspenso com pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

Da constitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública
Equiparar a Defensoria Pública à advocacia, pública ou privada, é desconsiderar as especificidades de cada uma das funções essenciais à Justiça, distintamente distribuídas pela Carta Constitucional. Notadamente, a Defensoria Pública nunca exerceu as mesmas funções da advocacia.

Nesse sentido, a EC nº 80/2014 reforçou, com maior clareza, as diferenças existentes entre essas instituições, ao criar uma seção distinta no capítulo das funções essenciais à Justiça para tratar especificamente da Defensoria Pública. Sobretudo diante do atual parâmetro de interpretação, a eloquente alteração do texto constitucional revela a impropriedade em insistir na comparação entre as diferentes funções essenciais à Justiça. Como uma espécie de ativismo judicial às avessas, o argumento comparativo diminui o alcance e propósito do esforço do poder constituinte derivado em singularizar cada uma dessas funções e promove verdadeiro retrocesso nos avanços já expressamente incorporados ao texto constitucional.

Como bem apontado pelo ministro Fachin no voto já mencionado em introdução, a Defensoria Pública está mais alinhada ao papel institucional do próprio Ministério Público. De fato, há um caráter público-social na atuação de ambas as instituições. Não obstante, à Defensoria Pública foi incumbido desafio próprio. Somente a ela coube a expressa missão de promoção dos direitos humanos e de defesa integral dos necessitados, tanto na esfera judicial, quanto na esfera extrajudicial.

Vale recordar que o próprio Ministério Público já teve as suas funções aglutinadas com a da advocacia pública. O distanciamento histórico permite hoje concluir que, em verdade, são muito distintas as funções exercidas pelo Ministério Público quando comparadas àquelas atualmente exercidas pela advocacia pública. Forçoso compreender que a distinção introduzida pela Constituição Federal de 1988 acerca das funções do Ministério Público em relação àquelas atribuídas à advocacia pública tem a mesma eloquência e força normativa das distinções introduzidas pela mesma Carta Constitucional em relação às funções da Defensoria Pública frente à advocacia.

O Defensor Público não pode escolher a quem defender, pois seu dever de atuação decorre diretamente da Constituição Federal — tanto que não necessita de mandato para atuar em defesa de seus assistidos, como expressamente previsto na LC nº 80/1994, artigos 44, XI, 89, XI, e 128, XI, tampouco de inscrição no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), como ficou assentado no julgamento do RE 1.240.999 e da ADI 4.636 pelo STF. Nessa mesma linha, somente à Defensoria Pública coube o exercício da curadoria especial, nos termos do artigo 72 do CPC/2015.

A necessidade do vulnerável urge, é instantânea e atual. É fundamental destacar que a Defensoria Pública tem a missão de promover os direitos humanos na perspectiva do acesso à justiça adequada e tempestiva. Os longos períodos que um processo judicial demanda, no já assoberbado aparato judiciário brasileiro, impõem efeitos mais graves aos vulneráveis, que não possuem condições de suportar o ônus do tempo de espera pela efetiva obtenção da tutela jurisdicional, na mesma proporção que os demais indivíduos da sociedade. Por se referirem a pessoas em situação de vulnerabilidade, os direitos tutelados pela Defensoria Pública assumem um caráter de urgência humanitária, que não pode ser negligenciado.

Veja-se que nas alegações ministeriais e no próprio voto da ministra Carmen Lúcia, o debate se restringe a uma premissa de pretensa isonomia formal entre a advocacia e a Defensoria Pública, ignorando a realidade material das partes por elas representadas. A Defensoria Pública, como instituição, é prevista na Constituição Federal justamente em defesa de pessoas muitas vezes invisíveis ao poder público. Essa invisibilidade é mantida pela linha argumentativa que conclui pela suposta inconstitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública, eis que as pessoas que necessitam do atendimento desta instituição sequer foram mencionadas na petição do Ministério Público, ou no voto da ministra Carmen Lúcia.

O debate não pode ignorar as diferenças sociais, tampouco as pessoas que figuram, não como objeto, mas como sujeitos do processo. O público-alvo da Defensoria Pública é formado por pessoas à margem da sociedade, em sua maioria de baixa escolaridade, muitos analfabetos, ainda não incluídos digitalmente, com diversas limitações e dificuldades para o trato de questões formais e obtenção de documentos. Aliás, o reconhecimento de que a pessoa se encontra em situação de vulnerabilidade é pressuposto para a atuação institucional da Defensoria Pública, a qual, por sua vez, comumente, somente é demandada depois de reiteradas negativas e omissões do poder público em relação a essa parcela mais desfavorecida da população.

Nesse contexto, os documentos eventualmente requisitados pela Defensoria Pública são produzidos e mantidos pelo próprio poder público, cujo dever de acesso à informação é previsto em lei; assim como a obrigação de fornecimento de documentos em processos administrativos; lembrando, ainda, o direito de certidão e de obtenção de informações, de matiz constitucional, bem como o próprio dever estatal quanto à prestação dos serviços públicos, de sua competência. É dizer, a necessidade do exercício do poder de requisição pela Defensoria Pública revela a prévia omissão estatal em relação a deveres que devem ser observados de ofício, pois decorrentes de expressa previsão legal e constitucional.

Da mesma forma, as normas que definem as obrigações do Estado brasileiro para a proteção dos direitos humanos não dependem da ordem judicial para que sejam executadas. Portanto, a autoexecutoriedade e autoaplicabilidade como atributos da requisição — como questionados pelo MPF em sua fundamentação — em nada inovam no dever estatal, pois dizem respeito a obrigações definidas, antes, pela própria legislação. O poder de requisição da Defensoria Pública, quando exercido, não declara nem constitui obrigação, mas, sim, assegura materialmente o direito dela decorrente, em razão da natureza essencial do bem sob sua proteção e da urgência da necessidade do indivíduo enquanto pessoa humana

A atuação da Defensoria Pública não pressupõe a existência de lide, eis que também engloba demandas de jurisdição voluntária. Na realidade, o poder requisitório dirige-se não somente a tutelar direitos numa relação endoprocessual. A missão constitucional da qual está incumbida a Defensoria Pública é muito mais ampla do que a exclusiva atuação perante o Poder Judiciário, contexto no qual se destaca, também, a tendência atual de busca por métodos alternativos de composição social. Não é demais lembrar que a requisição é ato formal com fundamentos específicos. Como todo ato juridicamente relevante, poderá ser levado ao conhecimento do Judiciário, por qualquer parte legítima, antes ou depois de praticado. Portanto, o poder de requisição da Defensoria Pública não ofende, de qualquer forma, o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Seja para atuação na esfera extrajudicial, seja na esfera judicial, o poder de requisição da Defensoria Pública tem como objetivo primordial a concreta efetivação de direitos previstos na própria Constituição Federal. Ao buscar a assistência da Defensoria Pública, o vulnerável procura, antes, o amparo do Estado e da sociedade como um todo, cujos objetivos, fundamentais, expressamente previstos no artigo 3º da Constituição Federal, incluem o de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Outro ponto relevante e desconsiderado é o de que na maioria dos processos movidos pela Defensoria Pública não é o advogado particular que está como representante da parte adversa. Pelo contrário, é o próprio Ministério Público que figura como ex adversus em parte relevante dos processos sob atuação da Defensoria Pública. Portanto, questionar o seu poder requisitório sob o argumento da paridade de armas citando apenas a advocacia, distorce a real dinâmica das ações patrocinadas pela Defensoria Pública. Outrossim, o Ministério Público também é titular do poder de requisição e figura como parte adversa em processos nos quais atuam advogados, públicos ou privados. Desse modo, o argumento de que o poder de requisição da Defensoria Pública desequilibra a relação processual porque os advogados não gozam da mesma prerrogativa, aplica-se, antes, ao próprio Ministério Público.

De certo, o poder de requisição exercido pela Defensoria Pública não desequilibra qualquer relação. Como instrumento de defesa de pessoas em situação de vulnerabilidade, o poder requisitório da Defensoria Pública é a própria expressão do princípio da isonomia, na máxima de que se deve “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”, pois busca reequilibrar uma posição materialmente desfavorável da pessoa mais necessitada em relação a todos os demais indivíduos da mesma sociedade, bem como frente ao poderio estatal. Disso sucede que a efetivação do preceito da paridade de armas, como decorrência do princípio da isonomia exige a compensação instrumental que eleve o mais necessitado à mesma posição de quem possui recursos financeiros para municiar-se em eventuais batalhas jurídicas.

Na realidade, o poder requisitório da Defensoria Pública é instrumento tacitamente conferido pela Constituição Federal para o cumprimento da missão institucional de concretização dos direitos fundamentais dos mais necessitados. Compreende-se, então, que o poder requisitório da Defensoria Pública está implícito na missão institucional prevista no artigo 134 da Constituição Federal. Em contextos de vulnerabilidade, o poder de requisição da Defensoria Pública transcende a ordem formal, pois traz consigo uma necessidade material intrínseca, da qual não pode ser dissociado. Diante da necessidade urgente do indivíduo, o instrumento para a sua proteção deve ser proporcionalmente eficaz à essencialidade do bem que é objeto de sua tutela.

De acordo com a teoria dos poderes implícitos, a Constituição, ao conceder uma função a determinado órgão ou instituição, também lhe confere, implicitamente, os meios necessários para a consecução de seus objetivos. Nesse caso, dirigindo-se à proteção dos direitos mais essenciais de indivíduos que já partem de uma situação de negativa e de uma posição socialmente desfavorável, o poder de requisição constitui núcleo essencial indissociável do funcionamento da Defensoria Pública, como expressão e instrumento do regime democrático.

Considerações finais
Por todas essas razões, compreende-se que o poder de requisição da Defensoria Pública é constitucional, como parte do núcleo essencial implicitamente indissociável da sua missão, como expressão e instrumento do regime democrático. O exercício dessa prerrogativa não afasta qualquer fato juridicamente relevante do conhecimento do Judiciário. Ademais, essa prerrogativa é a própria expressão da isonomia, como forma de reequilíbrio substancial das relações jurídicas, processuais e materiais, das quais decorram direitos ou obrigações de pessoas socialmente vulneráveis.

O poder de requisição da Defensoria Pública promove o direito do qual é titular a pessoa humana em situação de vulnerabilidade, assegurando a sua proteção, conforme previsto na Constituição Federal. Desse modo, negar a constitucionalidade do poder requisitório da Defensoria Pública atenta contra os mesmos princípios suscitados pelo Ministério Público, quando interpretados sob uma hermenêutica de acesso à Justiça e de fortalecimento da democracia.

Marcel Vitor Guerra Defensor Público do Estado do Espírito Santo e doutorando em Direito pela Uerj

Anderson Araújo Couto especialista em Direito Constitucional e Defensor Público federal.

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